Entrevista
Revista Lugares – Oliver Mann
Você é formado em Comunicação Social.
Como se aproximou das artes visuais?
Frequentei por seis meses o curso de Ciências Sociais da
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, antes de iniciar o
curso de comunicação social na UFRJ, no Rio de Janeiro. Embora percebo ter uma
formação inicial calcada na antropologia, cursar posteriormente comunicação
social alimentou meu interesse pela fotografia e seu uso aplicado em áreas
afins, como jornalismo, publicidade e produção editorial. Mas não foi o bastante para me aproximar das
artes visuais.
Como surgiu seu interesse pelos
processos fotográficos?
O
interesse em processos fotográficos mais
pontuais foi o que eventualmente me trouxe para perto das artes visuais. Isso
ocorreu quando voltei a São Paulo e cursei por três semestres fotografia na
Escola Superior de Propaganda e Marketing, num momento onde a conversão de
mídias analógicas e digitais só estava começando a despontar. Minha experiência
com fotografia foi analógica e profundamente imersiva. Passava horas dentro do
laboratório entre ampliadores e bandejas de químicos tentando interpretar
grades de contraste e tons de cinza. Nessa experiência, quis andar um pouco na
contramão da evolução digital e abracei outros processos ainda mais primitivos
como os feitos com sais ferrosos, no caso a calotipia e a cianotipia. Nesse
ponto já não estava mais conectado à fotografia por questões de aplicação
prática como quando cursava Comunicação Social.
Como se articulam as tensões entre
fotografia como documento e enquanto arte em sua obra?
Eu
sempre tenho em mente uma passagem de Villém Flússer em seu livro “Filosofia da
Caixa Preta”, onde a condição da fotografia como documento se relativiza a
partir do canal em que ela é distribuída e consumida. Uma mesma imagem
fotográfica pode servir para estampar um calendário comemorativo numa
repartição pública, ser emoldurada como um objeto de arte numa galeria ou ser
reproduzida numa camiseta de marca juvenil. Essa fluidez da mensagem
fotográfica ganhou sentido para mim quando visitei uma exposição dos fundadores
da Escola de Dusseldorf, o casal Bernd e Hilla Becher, no Mediapark de Colônia
em 2006. O rigor das séries tipológicas
me impressionou não pelo aspecto documental, mas justamente pela
delicada trama de detalhes que se deixava entrever a partir das justaposições
mentais em que fui automaticamente compelido
como reação áquela monumentalidade. A repetição formal das mesmas
orientações arquitetônicas ao longo de dezenas de fotografias alinhadas em
grades liberou o objeto de seu sentido funcional e transformou-o em um
arquétipo. Mas isso só foi possível graças a uma aproximação rigorosamente
documental. Esse também foi o momento
em que solucionei o formato de uma atividade que já vinha desenvolvendo algum
tempo e que se transformou numa dissertação de mestrado apresentado na Unicamp
em 2010, sob a orientação do Professor Mauricius Martins Farina.
De onde veio a ideia de trabalhar com o
espaço urbano? Como essa ideia se transforma em imagem?
Na
verdade, a idéia de trabalhar no espaço urbano já vinha há tempos, mas faltava
uma metodologia e uma solução formal.
Minha
inquietação decorre da aparência caótica com que o tecido urbano vai se
espalhando, do centro para a periferia, e de como alguns vazios que desafiam a
continuidade dessa ocupação coexistem próximo a nós. Não me aproximo ou
atravesso esses locais como um
mensurador, me vejo mais como um andarilho aberto às dimensões afetivas
que cada espaço faz refratar. E não são estesias agradáveis, muito pelo
contrário. Faço com certa regularidade
referências ao livro “Não-lugares”, de Marc Augé, e também aos trabalhos dos
Situacionistas e Psicogeógrafos franceses e ingleses.
Os
vazios que me interessam constituem-se de terrenos baldios, áreas próximo a
pontes, margens de matas ciliares, galpões abandonados, e essas porções não
ocupadas onde existe uma enciclopédia de objetos e utensílios domésticos ao
relento, mas não completamente
desencarnados de suas funções domésticas. O sofá serve como um emissário de uma
esfera privada que fala de coisas íntimas, de crônicas familiares que de outra
forma dificilmente seriam escancaradas aos olhos do público passante. É a
interface entre o espaço público e essa dimensão privada que é tão cara. Isolei esse objeto dos demais detritos e
passei a fotografar extensamente, usando uma câmera de médio formato,
procurando sempre as mesmas condições de luz e um controle homogêneo no laboratório
de revelação. Mas essa preocupação no controle da tomada da imagem só foi
adotado após conhecer o trabalho dos Bechers. Foi o que definitivamente
intrumentalizou e disciplinou minha visão.
Como se colocam planejamento e acaso em
seu processo criativo?
No que diz respeito à forma com que fotografo esses
objetos, não há acaso. Procuro sempre as condições mínimas para que haja uma
homogeneidade entre um enquadramento e outro, respeitando a qualidade de luz, a
área ocupada pelo objeto no recorte, o nível do terreno, o mesmo equipamento e
a mesma objetiva. A paisagem em segundo plano é uma variante importante. Ela
pode muitas vezes indicar de forma sutil a localização cultural do objeto. Após
a publicação de meu trabalho de mestrado, passei alguns meses fotografando
sofás em condições similares em alguns países europeus e asiáticos. No tocante
ao modo com que procuro esses objetos, aí passo a depender do acaso. Mas esse acaso é a regra do jogo, é o que
torna o processo todo vivo e empolgante.
Passei três meses errando na periferia de Roma e o acaso me levou a um aterro ás
margens de uma linha de trem, próximo à estação Tor di Quinto, onde haviam
descartado um pesado sofá. Antes dessa primeira descoberta foram dias à deriva.
Esse comportamento de estar à deriva ficou mais claro
quando soube por intermédio do artigo de Francesca Recchia[1] que muitos desses espaços já tinham sido
explorados no final dos anos noventa por
grupos denominados “Stalkers”, descendentes do movimento universitário que
eclodiu por toda Itália no final de 1990; “La Pantera”. O ideário dos
“Stalkers” era exatamente isso, romper as barreiras físicas que ordenavam o
pedestre a um caminho pré-determinado, sem chances de mirar o que se estendia
do outro lado da cerca, descobrir esses vazios, ocupar esses vazios,
ressignificar esses vazios. Mas nunca adotar uma postura totalmente racional
nas investidas ao desconhecido. Isso quer dizer se entregar ao sabor da deriva.
No momento em que li esse artigo senti uma estranha afinidade. Nessa discussão sobre planejamento e acaso
pode surgir ainda uma pergunta: qual é afinal o recorte do meu trabalho? O
objeto ou o lugar? Eu diria que os dois são indissociáveis.
Quais você considera seus trabalhos
mais significativos e por quê? Fale um pouco sobre eles.
Um
trabalho particularmente significativo foi o “17 cianotipias e 4 viragens”,
exposto na Galeria Lunara de Porto Alegre em agosto de 2003. Esse foi um ponto
gratificante nas minhas experimentações com o cianótipo. Havia exposto no sul
da Itália, dois anos antes, uma série de frontões e outros detalhes
arquitetônicos de fazendas coloniais do interior paulista usando o mesmo
princípio, mas não havia atingido uma qualidade que me satisfizesse. Acho que a
imprevisibilidade do processo dos sais ferrosos e essa necessidade de colocá-la
sob controle foi o que me ajudou a ser mais regrado quanto aos projetos posteriores, inclusive esse
último, o dos sofás.
Em que você está trabalhando agora?
Quais seus projetos para o futuro?
Atualmente
dou aulas de fotografia para o curso de comunicação social na Universidade
Metodista de Piracicaba.
Também
estou pensando num projeto de doutorado onde eu possa focar e analisar a percepção do espaço alterado
pela ocupação humana que os fotógrafos da New Topography se dedicaram a
registrar. O trabalho de tipologia industrial de Bernd & Hilla Becher é
frequentemente associado à New Topography, inclusive dividindo espaços de
exposição com os fundadores desse movimento. Penso em ir por essa seara e
desenvolver um exercício prático que esteja vinculado às principais questões
desse movimento.
Bibliografia
Lieven De Cauter, Ruben De Roo & Karel Vanhaesebrouck (Eds.) Art and Activism in the Age of
Globalization. Rotterdam: Nai Publishers 2011.
[1]
“Radical Territories of
Affection: the Art of being Stalker”; Francesca Recchia. in “Art and Activism in
the Age of Globalization” Nai Publishers. Rotterdam. 2011 pp160 a 170
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